O BRASIL NÃO É MAIS UM CELEIRO MISSIONÁRIO
*Leonardo Gonçalves
Conheci a Cristo no final dos anos 90. Minha
experiência de conversão se deu em uma igreja batista recém-plantada na minha
cidade. Meu batismo e minha experiência de discípulo começou no inicio do ano
2000, na igreja Assembleia de Deus. Eu vivi uma parte do movimento AD2000 e da chamada “Década da Colheita”, e de certa forma toda minha geração foi
influenciada por estes movimentos.
Uma e outra vez, escutávamos a frase: “O
Brasil é um grande celeiro de missionário”. Por nossa pequena igreja passavam
alunos da “Missão Horizontes” falando sobre a janela 10/40 e sobre como o
brasileiro gasta mais com Coca-cola do que com o Reino de Deus. Após o culto,
nós doávamos aquilo que tínhamos para as missões. Lembro-me de um diácono pobre
doando um relógio a um missionário que havia perdido o seu em uma viagem de
barco na Amazônia. Lembro-me também de um amigo que constrangido pela
necessidade da obra e sem nada para doar, tirou dos pés um par de tênis Nike e
colocou sobre o altar, voltando para casa descalço depois do culto. A gente
dava o que tinha, e não era por causa de alguma promessa de retorno financeiro
(como nas campanhas dos televangelistas atuais), mas simplesmente por amor e
desejo de ver o evangelho avançando entre as nações da terra. Os jovens da
igreja (e eu era um deles) eram muito ativos: organizavam jograis e teatros com
temas missionários, e muitos de nós queríamos ser pastores ou missionários.
Hoje, vários daqueles jovens com os quais cresci são pastores, evangelistas,
missionários, obreiros em suas igrejas locais, e estão envolvidos de alguma
forma com a grande comissão.
UMA IGREJA QUE RESPIRAVA MISSOES
Mas eu não consigo
escrever este texto sem lágrimas nos olhos. Agora mesmo, sinto o peito doer e
meus olhos se enchem de água ao me lembrar daqueles dias quando a gente vivia
de maneira tão intensa, organizávamos vigílias, acampamentos de oração,
visitávamos, evangelizávamos de verdade. Conheço um jovem em Cristo que aos 16
anos tinha uma rotina invejável: Ele fazia semanalmente visitas no hospital da
nossa pequena cidade, e saia dali direto para o asilo contrabandeando doces e
bíblias para os anciãos com quem passava parte do seu domingo. Por volta das 4
horas da tarde saia dali com outros meninos da sua idade, numa kombi velha da
Volkswagen para realizar visitas em uma comunidade rural e "cooperar"
com os irmãos de lá. As vezes a Kombi não vinha, e eles faziam o trajeto de 18
quilômetros de bicicleta. Quando chegavam a cidade novamente, era para tomar um
banho e ir ao culto, ansiosos por ouvir a Palavra pregada e dispostos a
participar, seja cantando, pregando, limpando ou fazendo qualquer outra coisa
na igreja local. Durante a semana, ele e outros eram voluntários no “Desafio
Jovem Liberdade” – centro de recuperação para usuários de drogas – muitas vezes
saindo do trabalho direto para lá, para ensinar violão, passar algum tempo de
comunhão com os internos e pregar no culto da noite. Esses rapazes respiravam
missões.
Na época, surgiam
seminários com cursos rápidos, em média 2 anos, em regime de internato, onde a
ênfase não era apenas preparar teólogos, mas obreiros. Trabalhavam-se questões
como caráter, perseverança, domínio próprio, obediência, e grande parte das
disciplinas do curso eram de viés missionário. Éramos confrontados com as biografias de William
Carey, David Brainerd, Hudson Taylor, Adoniran Judson, George Miller, e nos
inspirávamos neles. Criticava-se o modelo de seminário que formava apenas
teólogos e falava-se muito em vocação ministerial. Escutávamos uma e outra vez
que ser pastor é um dom e não uma profissão, e que o ministério é muito mais
dar do que receber. O ponto alto das aulas era quando por lá passava algum
missionário em transito, e contava as experiências vividas naquela terra
desconhecida. Lembro-me de ter ouvido um desses missionários falando sobre o
país dos Incas, e de como me senti desafiado pelo testemunho daquele jovem
obreiro. À noite, enquanto orava por aquele país, discerni claramente a voz de
Deus falando fortemente ao meu coração: “Eu te levarei ao Peru!”. Cai em
pranto, sentindo um misto de temor e imensa alegria, pelo peso da
responsabilidade e pela honra recebida. Sai do meu país em 2003, quando ainda se vivia a ressaca destes movimentos.
JOVENS
QUE NÃO ALMEJAM O MINISTERIO
Hoje a igreja evangélica definitivamente não
é a mesma. Ela nem sequer se parece com aquela igreja de 15 anos atrás. Cada
vez que viajo ao Brasil, fico absorto com a secularização cada vez maior da
igreja. Vejo uma igreja rica, muito rica, mas tremendamente ensimesmada. Em
círculos tradicionais e na ala pentecostal clássica, pouco se fala em
evangelismo e missões. Já os neopentecostais distorceram o conceito de
evangelismo e missões transformando a igreja em uma pirâmide e implementando
visões celulares das mais absurdas, substituindo paixão missionária por
obediência cega a um líder autoritário. Se antes os jovens desejavam o
ministério, a geração atual foge dele. É comum ver rapazes de moças de vinte e
poucos anos com altos salários, comprando carros importados, fundando empresas,
empreendendo e ganhando muito dinheiro. Os pastores destas igrejas sofrem, pois
tem que se desdobrar em mil ofícios para atender as necessidades do rebanho, já
que ninguém quer se envolver no ministério e sacrificar as horas de descanso
para cuidar das necessidades alheias. Alguns poucos ainda ousam se envolver com
missões, mas raramente em tempo integral. Ao invés disso, doam parte das suas
férias para servir em algum país exótico, e passam 4 ou 5 dias visitando alguma
igreja local, e o resto das férias em alguma praia paradisíaca do Índico
ou do Pacífico. Não trabalham nada, mas tiram umas quinhentas fotos com
crianças locais e chegam a suas igrejas com testemunhos fantasmagóricos acerca
de como salvaram o mundo em seis dias e ensinaram os pastores e missionários
locais a pastorearem suas igrejas.
O conceito de missão tem sido banalizado por
uma geração hedonista mais preocupada com seus prazeres do que com glorificar o
Cristo entre as nações. Para justificar sua falta de coragem para encarar o
campo missionário, criam-se as mais distintas agencias missionárias, muitas das
quais não enviam e nem sustentam nenhum missionário, dedicando-se apenas a
recrutar voluntários para viagens de ferias, exatamente do tipo que mencionei
no último parágrafo. Diga-se de passagem, o dinheiro gasto por uma equipe de
voluntários de férias, se fosse doado integralmente a alguma missão séria que
trabalhe entre os autóctones, daria para sustentar cerca de 10 obreiros durante
um ano. Crer que 20 brasileiros em uma semana podem fazer um melhor trabalho
que um obreiro nacional em um ano é um sofisma, mas parece ser este o
pensamento predominante nessas missões recém-criadas no Brasil (as exceções
conformam a regra).
Embora não estejamos mais
tão engajados com missões transculturais, nunca tivemos tantos “ESPECIALISTAS”
em missões! Meninos de vinte anos, com pouca ou nenhuma formação teológica, sem
experiência de vida ou ministério e cujo maior esforço missionário foi falar de
Jesus para o colega de classe, editam blogs e vlogs, dão opiniões e organizam
conferencias missionárias onde eles mesmos são os preletores. Recentemente um
desses palpiteiros da internet, um garoto de 20 anos, escreveu um livro sobre
missões. Muita gente elogiou a atitude do rapaz e não encontrei ninguém, nem
mesmo entre a velha guarda evangélica (que também é ativa nas redes sociais)
para colocar freio na arrogância do moleque que escreveu suas 120 paginas sobre
um assunto que ele nunca experimentou de fato. Há algum tempo recebi duas
equipes de voluntários na cidade de Piura, onde desde 2008 temos desenvolvido
alguns projetos missionários. Um dos
rapazes que nos visitou, ainda nem tinha barba no rosto, mas logo se apresentou
como consultor em missões.
Segundo
ele, varias igrejas no Brasil contam com seus conhecimentos de consultoria.
Isso me parece estranho, se considerarmos que ele nunca foi missionário de
fato, apenas participou de algumas palestras com ênfase na famigerada e pouco
eficaz Missão Integral (3). Recebi deste garoto que nunca fez missões, diversos
conselhos sobre como treinar meus obreiros e torná-los mais efetivos. Outros
chegam já satanizando a cultura, tendo visões esquisitas acerca de demônios
territoriais e correntes que estão aprisionando nossa igreja e missão, algo
muito esquisito e sem bases bíblicas em minha opinião.
UMA JUVENTUDE QUE QUER ENSINAR, MAS NÃO SE PRONTIFICA A APRENDER
Durante os dois últimos meses visitei varias
igrejas no Brasil e por onde passei, desafiei pessoas para virem ao campo
missionário no Peru, e o máximo que consegui foram uns garotos meio-hippies
dispostos a vir salvar o mundo em uma semana e ensinar os pastores a pastorear
suas igrejas. Todos os rapazes com quem
falei queriam vir e ditar seminários,
palestras, conferências, treinamento para pastores, e não atentavam para o
ridículo das suas propostas, já que eles mesmos nunca pastorearam nem suas
próprias famílias. No entanto, nenhum deles se mostrou disposto a passar ao
menos um ano trabalhando de forma sistemática e fiel junto aos nativos,
participando da vida, da luta e das dores do povo, compartilhando a comida e
vivendo a verdadeira essência da missão. Todos queriam ensinar, ninguém estava
disposto a viver. Todos queriam vir e impor; ninguém estava disposto a vir,
viver e receber. Todos queriam formar obreiros, ninguém queria ser formado como
obreiro. Todos queriam vir correndo e voltar; ninguém estava disposto a vir e
permanecer. Cada um tinha uma visão diferente para a igreja peruana, mesmo sem
ter conhecido de perto este campo missionário. Todos tinham receitas exatas
para fortalecer o ministério local, mas ninguém queria servir no ministério.
Muitos reis, nenhum servo. Como diria o pastor Kolenda, de saudosa memória,
simplesmente “muito cacique para pouco índio”.
UMA IGREJA SECULARIZADA QUE NÃO AMA MISSÕES
Não
posso dizer exatamente onde foi que a igreja errou (não se preocupem, deve ter
algum conferencista de vinte anos capaz de decifrar este mistério!). Porém,
mesmo sem saber exatamente, acredito que alguns fatores são visíveis e fáceis
de discernir: economia estável, bons empregos, oportunidade de fazer duas,
três, quatro faculdades, anos de pregação antropocêntrica que exclui o
sacrifício como parte da experiência cristã, tudo isso contribuiu para uma
horrível secularização da igreja. Se eu fosse dispensacionalista, não teria
dificuldade em aceitar que a igreja está vivendo a “Era de Laodicéia”. A igreja
de Laodiceia e a igreja brasileira são irmãs: As duas são ricas materialmente,
ensimesmadas, autossuficientes. As duas estão corroídas pelo pecado,
empobrecidas de galardão e cegas quanto a sua real situação. Se há
algumas décadas dizia-se que o Brasil era um celeiro de missões, hoje tenho
certeza que este título deve pertencer a algum outro país: China, Índia, Coreia
do Sul, talvez... Mas definitivamente, esse título já não se pode aplicar ao
Brasil.
***Leonardo Gonçalves é missionario há 11 anos.
Neste período ajudou a plantar e consolidar igrejas no Brasil, Argentina
(Patagonia e provincia de missiones), e no norte de Peru. Desde 2008 vive na
cidade de Piura, envolvendo-se na plantação de 7 igrejas autóctones. O Projeto Piura sustenta hoje 6
obreiros autoctones e ajuda a 60 crianças provindas de comunidades carentes do
Peru.